A pesquisa e debate são caminhos para entender fenômenos em diferentes perspectivas. Durante 20 anos, o Grupo de Pesquisa Nutrição e Pobreza abriu espaço para a colaboração da sociedade civil para divulgação e construção de políticas públicas de enfrentamento à fome e desnutrição. O Grupo integra o Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (USP) e desenvolve pesquisas, eventos e publicações científicas sobre o complexo cenário que envolve nutrição e pobreza no país.
Os dados mais recentes sobre o grupo estão compilados no mais recente lançamento: Diálogos sobre Nutrição e Pobreza: 20 anos de integração entre pesquisa, serviço e política pública, lançado pelo IEA - Usp. A obra contém textos inéditos, como Segurança Alimentar na Pandemia de Covid-19 e A Produção de Conhecimento em Prol do Fortalecimento da Participação Social para o Enfrentamento da Insegurança Alimentar e Nutricional.
Os dados apontados na obra mostram que a renda dos brasileiros foi impactada negativamente durante a pandemia de Covid-19, e que programas de composição de renda foram importantes para o orçamento familiar. Nesse cenário, o hábito alimentar das famílias também foi fortemente impactado, havendo piora na qualidade da alimentação (p.282). Uma das ações positivas relatadas na coletânea foi a ação do Centro de Recuperação e Educação Nutricional (Cren), que prestou apoio e acompanhamento de famílias vulneráveis durante a crise sanitária.
Conversamos com Maria Paula de Albuquerque, pediatra e nutróloga pela Escola Paulista de Medicina e vice coordenadora do Grupo de Pesquisa Nutrição e Pobreza (IEA-USP). Possui doutorado na área de nutrologia e impactos da desnutrição crônica em questões infecto-contagiosas. Ela trabalha com crianças mal nutridas há 30 anos e está no CREN desde 2002, onde atualmente é Gerente Geral Clínica.
A pesquisadora nos conta um pouco do panorama das políticas públicas brasileiras, da importância da ação da sociedade civil e da trajetória de duas décadas de pesquisa numa das mais destacadas universidades do país. Confira abaixo a entrevista na nossa coluna #3Perguntas!
A alimentação também é um direito humano que deve ser atendido desde o combate à pobreza até o tratamento de riscos, como a obesidade. As políticas públicas brasileiras atuam para garantir esse direito?
A gente tem políticas públicas que deveriam dar conta da garantia desse direito. A questão é que elas não são executadas e precisam, em alguma medida, serem melhoradas. Haja vista o PNAE (Programa Nacional de Alimentação Escolar) que sofreu com subfinanciamento, e a qualidade da alimentação escolar é gravemente ameaçada em função de um subfinanciamento. E o mesmo acontece com o SUS. Em termos de política, o SUS é a maior política do nosso país, em abrangência, mas ele claramente tem uma questão de subfinanciamento e não alcança efetivamente os vazios assistenciais, que é uma das premissas do SUS: a universalidade.
Então a gente tem as políticas, a gente só não tem a implementação dessas políticas e a execução de forma adequada. E o que eu entendo é que à medida que a gente tem alguns desmanches de algumas políticas, obviamente a gente tem um retrocesso na garantia desse direito. Então políticas como por exemplo o Programa de Aquisição de Alimentos, ou as próprias políticas do próprio PNAE, sofrem. O não financiamento dessas políticas é uma forma de você fazer o desmanche.
Já no que diz respeito à obesidade, aqui sim faltam muitas políticas: não é que elas não sejam implementadas, elas não existem. Aqui nós estamos falando especificamente de alimentos ultraprocessados que não são taxados, de cantina escolares que não tem ainda uma regulamentação clara. A questão da regulação do mercado, do ponto de vista de um alimento ultraprocessado ser mais barato que um alimento in natura, a questão dos créditos e do subsídios ao pequeno agricultor, da questão dos desenhos urbanos que não favorecem um deslocamento ativo e portanto, também não favorecem o uso de transportes públicos. Enfim, aqui sim com relação a obesidade falta uma gama imensa de políticas para redução da obesidade!
Com relação à fome, políticas políticas existem. Elas precisam ser implementadas ou revistas, a exemplo, das políticas de transferências de renda, de redução de desigualdade. Já na obesidade a gente tem uma lacuna muito grande, muito em função do lobby, muito em função do papel que a indústria de alimentos tem nesse sistema alimentar.
As crianças e adolescentes são considerados um grupo vulnerável quando o tema é insegurança alimentar. Que ações devem ser permanentes para esse grupo para que não haja piora no cenário?
Sem dúvidas, crianças são um grupo de risco para a insegurança alimentar. As crianças na verdade são um grupo de risco para várias outras violações de direitos: Abusos, violência física e a violação do direito humano à alimentação e nutrição adequada sustentável é um deles.
Então, por isso, no artigo 227 da nossa constituição, as crianças precisam ser centro das políticas. Nesse sentido, o que a gente precisa é garantir ações que devem ser permanentes para esse grupo, para que não haja piora no cenário e, efetivamente, levar a cabo o artigo 227 da nossa constituição. Por isso, eu acho que a mobilização da sociedade civil nesses espaços de participação social é fundamental. Pra que aquilo que tá previsto na lei seja efetivamente cumprido. Então, eu acho os movimentos de proteção, controle e fiscalização social extremamente necessários, especialmente nesse cenário político que a gente vive.
Art. 227: é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
Nos 20 anos de pesquisa do Grupo Nutrição e Pobreza, é possível apontar melhorias no cenário de fome e insegurança alimentar no Brasil?
São 20 anos do grupo de pesquisa Nutrição e Pobreza. E a gente continua falando de fome, a gente continua ainda falando de pobreza e de desigualdade. É óbvio que nesse período de 20 anos a gente observa avanços nas políticas. Mas são políticas que apesar de serem políticas de estado, são muito frágeis à medida que existe uma mudança de configuração de governo. E acho que uma das poucas políticas que não foi derrubada de forma drástica foram os programas de transferência de renda, mas mesmo assim eles sofreram fortes ataques. Então eu acho que por mais que a gente tenha as políticas, a gente observa que a fragilidade dessas políticas, sem uma sociedade civil que fiscaliza, que controla, que exige, essas políticas de nada servem. Haja vista o que aconteceu com o CONSEA (Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional - desativado na gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro (2018-2022) e reinstalado no atual governo Lula).
Espaços de controle, de participação que foram, em uma canetada, desativados. Então eu acho que mesmo com as políticas de estado, elas não garantem efetivamente. Não existe política sem participação social. E a participação social é justamente para monitorar as políticas. Então, nesses 20 anos, o que a gente observa é a necessidade de um movimento social muito forte e presente para justamente sustentar essas políticas.